Fillipe Vilareína
Foi quando acordei de sonhos inquietantes, como o Samsa que virou barata. Senti, ainda sem abrir os olhos, o ardido quando tentei mover o braço. Um grito foi pouco, um urro, berro, não sei. Assim anunciei a chegada dele. Nesse movimento fiz escorrer pelo meu tronco uma quantidade absurda de pus, num fluxo lento, pegajoso e fedorento. Ele estava lá embaixo do meu braço, com uns cinco centímetros de diâmetro. Era uma bola vermelha e intumescida, que brilhava, pelo grande inchaço, à luz do sol da manhã. Tinha a carne amassada na ponta, pelo machucado que eu havia acabado de produzir. A visão foi mais estarrecedora que a dor. O que seria isso? Do dia para a noite minha carne cresceu, inflamou, numa espécie de mistura entre espinha gigante e verruga podre. Fui ao banheiro pingando o chão inteiro com sangue e pus. Ainda doía demais pra que eu sentisse o fedor que aquilo tinha. No espelho, eu tentei pegar, bem devagar, com o polegar e o indicador em forma de pinça. Outro urro. A dor foi ainda pior; o toque fora mais fraco que o movimento com o braço, mas me parecia que o toque consciente, com as mãos, imprimia um sofrimento maior, como se as mãos fossem partes amaldiçoadas, como se elas queimassem aquela maldita coisa. A dor foi tamanha que caí no chão, me contorcendo como se tivesse levado um choque. Aquilo latejava embaixo do meu braço, que procurei manter afastado do corpo, numa posição incomoda que já o fazia formigar. Aprendi a regra número um: nunca tocar o tumor.
Tumor purulento na axila direita - capítulo 2
O rio de pus, sangue e pedaços de pele já descia pelas escadas de emergência. Um cheiro de ferida aberta empesteava todo o prédio. Os bombeiros, em alvoroço, tentavam entrar no meu apartamento. Não sei por que não conseguiam, mas imaginei que o chão estava escorregadio demais ou que só eu era humano o suficiente para agüentar aquele fedor. Já não me incomodava mais aquela situação. Fiquei deitado no chão por dias, não sei quantos, até me acostumar com a Dor. O Tumor crescia cada vez mais. A Dor também. Desmaiei por várias vezes, mas não morri. Não sei por quê. Sei que eu era o Tumor agora. Por ter passado todo o tempo do seu crescimento com os olhos fechados, não conseguia ver mais nada, pelo inchaço descomunal em que se encontrava o meu corpo. Em alguns locais, sentia minha pele ruir, rasgando-se, fazendo as secreções irem embora. Quase não tinha mais tato, por eu ser a Dor. Sim, eu também era a Dor, que foi minha companheira por todo o meu suplício, até alcançar um patamar de tolerância extrema. Qualquer toque era como pequenas alfinetadas. Podia ouvir toda a confusão lá fora e lá embaixo. Ouvia os helicópteros. Não sei a proporção do que eu era agora. Um estrondo na porta.
- Oarrghhhh!!
Alguém vomitou.
- Argh! Tá... tá fedendo demais... Oaarrrrrghhhhhhh...
Ninguém conseguia ficar muito tempo lá na sala comigo sem que vomitasse. As pessoas entravam e saíam. Ouvia o murmúrio delas lá fora, entre gritos e onomatopéias. Ouvi perguntarem o que diabos eu seria. Ainda não sabiam que eu era o destino deles. Como sei disso? Sei que sou uma aberração bizarra demais para ser irrelevante, portanto eu seria o “algo a mais” que o mundo tanto esperava. Queria poder falar isso pra eles, mas no momento eu era uma bola inchada vazando uma sujeira que não parecia ter fim.
Foram dias de sofrimento para todos. Até pra mim, que era o Sofrimento. Sei que depois de certo tempo o silêncio me fez companhia de novo. Dias sem vir ninguém para junto de mim. Achava que tudo estava bem. Que tudo tinha ficado em paz.
Mas eles nunca saberiam qual seria o real propósito da minha existência depois que me fuzilaram.
Talvez eu tenha espalhado uma mortandade ou qualquer coisa do gênero entre todos. Lembro daqueles dias no apartamento, dos tiros me penetrando, da indiferença que eles me causaram, de algo me levantando, d'eu ser carregado e lembro de agora, que estou boiando nesse lugar. Acho que é o esgoto, pois posso ouvir os carros passarem aqui em cima. Não sei como vim parar aqui, mas agora estou mais feliz que antes, quando eu era um simples funcionário, encarregado de redigir petições e outros documentos no escritório. Posso sentir que em pouco tempo vou emergir em algum outro lugar, para entrar em contato profundo com o resto do mundo.
Eu sou Tumor. E todos são eu. Esta é a regra número dois.
Foi quando acordei de sonhos inquietantes, como o Samsa que virou barata. Senti, ainda sem abrir os olhos, o ardido quando tentei mover o braço. Um grito foi pouco, um urro, berro, não sei. Assim anunciei a chegada dele. Nesse movimento fiz escorrer pelo meu tronco uma quantidade absurda de pus, num fluxo lento, pegajoso e fedorento. Ele estava lá embaixo do meu braço, com uns cinco centímetros de diâmetro. Era uma bola vermelha e intumescida, que brilhava, pelo grande inchaço, à luz do sol da manhã. Tinha a carne amassada na ponta, pelo machucado que eu havia acabado de produzir. A visão foi mais estarrecedora que a dor. O que seria isso? Do dia para a noite minha carne cresceu, inflamou, numa espécie de mistura entre espinha gigante e verruga podre. Fui ao banheiro pingando o chão inteiro com sangue e pus. Ainda doía demais pra que eu sentisse o fedor que aquilo tinha. No espelho, eu tentei pegar, bem devagar, com o polegar e o indicador em forma de pinça. Outro urro. A dor foi ainda pior; o toque fora mais fraco que o movimento com o braço, mas me parecia que o toque consciente, com as mãos, imprimia um sofrimento maior, como se as mãos fossem partes amaldiçoadas, como se elas queimassem aquela maldita coisa. A dor foi tamanha que caí no chão, me contorcendo como se tivesse levado um choque. Aquilo latejava embaixo do meu braço, que procurei manter afastado do corpo, numa posição incomoda que já o fazia formigar. Aprendi a regra número um: nunca tocar o tumor.
Tumor purulento na axila direita - capítulo 2
O rio de pus, sangue e pedaços de pele já descia pelas escadas de emergência. Um cheiro de ferida aberta empesteava todo o prédio. Os bombeiros, em alvoroço, tentavam entrar no meu apartamento. Não sei por que não conseguiam, mas imaginei que o chão estava escorregadio demais ou que só eu era humano o suficiente para agüentar aquele fedor. Já não me incomodava mais aquela situação. Fiquei deitado no chão por dias, não sei quantos, até me acostumar com a Dor. O Tumor crescia cada vez mais. A Dor também. Desmaiei por várias vezes, mas não morri. Não sei por quê. Sei que eu era o Tumor agora. Por ter passado todo o tempo do seu crescimento com os olhos fechados, não conseguia ver mais nada, pelo inchaço descomunal em que se encontrava o meu corpo. Em alguns locais, sentia minha pele ruir, rasgando-se, fazendo as secreções irem embora. Quase não tinha mais tato, por eu ser a Dor. Sim, eu também era a Dor, que foi minha companheira por todo o meu suplício, até alcançar um patamar de tolerância extrema. Qualquer toque era como pequenas alfinetadas. Podia ouvir toda a confusão lá fora e lá embaixo. Ouvia os helicópteros. Não sei a proporção do que eu era agora. Um estrondo na porta.
- Oarrghhhh!!
Alguém vomitou.
- Argh! Tá... tá fedendo demais... Oaarrrrrghhhhhhh...
Ninguém conseguia ficar muito tempo lá na sala comigo sem que vomitasse. As pessoas entravam e saíam. Ouvia o murmúrio delas lá fora, entre gritos e onomatopéias. Ouvi perguntarem o que diabos eu seria. Ainda não sabiam que eu era o destino deles. Como sei disso? Sei que sou uma aberração bizarra demais para ser irrelevante, portanto eu seria o “algo a mais” que o mundo tanto esperava. Queria poder falar isso pra eles, mas no momento eu era uma bola inchada vazando uma sujeira que não parecia ter fim.
Foram dias de sofrimento para todos. Até pra mim, que era o Sofrimento. Sei que depois de certo tempo o silêncio me fez companhia de novo. Dias sem vir ninguém para junto de mim. Achava que tudo estava bem. Que tudo tinha ficado em paz.
Mas eles nunca saberiam qual seria o real propósito da minha existência depois que me fuzilaram.
Talvez eu tenha espalhado uma mortandade ou qualquer coisa do gênero entre todos. Lembro daqueles dias no apartamento, dos tiros me penetrando, da indiferença que eles me causaram, de algo me levantando, d'eu ser carregado e lembro de agora, que estou boiando nesse lugar. Acho que é o esgoto, pois posso ouvir os carros passarem aqui em cima. Não sei como vim parar aqui, mas agora estou mais feliz que antes, quando eu era um simples funcionário, encarregado de redigir petições e outros documentos no escritório. Posso sentir que em pouco tempo vou emergir em algum outro lugar, para entrar em contato profundo com o resto do mundo.
Eu sou Tumor. E todos são eu. Esta é a regra número dois.
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