segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Conto - De um nobre

Fillipe Vilareína

Lorde C. tinha terminado o que viera fazer ali. Por isso, vestiu seu casaco e foi embora tão silencioso quanto chegara. Estava satisfeito. Não sabia como era tão boa aquela sensação.

- A vida está em minhas mãos, - disse olhando para suas mãos sujas – só que ninguém pode ver que a possuo!

Ali estava escuro, mesmo assim ele conseguiu encontrar a garrafa d’água que levara consigo e lavou as mãos. Andou alguns metros e chamou o cocheiro para acompanhá-lo de longe. Depois subiria no coche e iria para sua casa descansar. Haveria muitas festas amanhã.

* * *
Era o auge dos bailes e saraus. Pessoas elegantes iam às mais distintas reuniões se encontrar e debater sobre política e, principalmente, sobre a vida alheia que era o esporte predileto da aristocracia.

Viste a senhorita B.?- dizia-se baixinho - Dizem que ela é um demônio que encanta todos os homens que a vêem.

Ao mesmo tempo em que as duas senhoras faziam esse comentário, olhavam para a senhorita B. que dançava com o elegante anfitrião do baile, o Lorde C.. Ela estava linda com um belo vestido vermelho, que era recatado, mas realçava toda sua beleza. Lorde C. ficara encantado com aquela moça logo quando ela entrara em sua casa:

Quem é aquele anjo?
É a filha do Lorde S., o Barão de K.
Uma moça bonita e de boa família é um artigo dificílimo de se encontrar em nossos tempos.
Não demoraria muito para Lorde C. firmar compromisso com a moça.

* * *
A sociedade tinha um grande respeito por Lorde C. . Filho do Conde de W., foi educado na França onde estudou filosofia e artes. Era também um excelente matemático, e tinha nos jogos numéricos (além dos bailes, é claro) o seu hobbie. Amava o teatro e era um dos mais assíduos freqüentadores do Teatro W.
Sua distinção, entretanto, ia embora quando via uma bela moça. Contava-se as mais intrigantes histórias de casos amorosos do Lorde C. e mulheres casadas. Dizia-se também que ele adorava aparecer pelo baixo meretrício da cidade à procura das rameiras mais jovens. Obviamente, não se podia provar nada contra ele, portanto consideraremos aqui essas histórias como calúnias.

* * *
Falaram-me muito a respeito de sua pessoa.
É? O que disseram?
Garanto que só coisas boas – disse a senhorita B. enquanto dançava com Lorde C.
As pessoas falam demais...
Não me importo com as línguas ferinas.

Lorde C. sorriu.

Tu és muito jovem, talvez não compreenda o que vou falar agora.
Fale, meu senhor.
As pessoas nunca são o que realmente são e sim o que os outros acham que elas são. Vivemos numa sociedade de aparências, minha cara. As impressões sobre o mundo prevalecem sobre o próprio mundo.
Uma teoria um tanto pessimista.
Não acho que seja pessimista. Mas se tu o achas é por que ela é. As teorias não são feitas pelos teóricos e sim por quem as escuta. Os teóricos apenas as formulam, quem julga se são verdadeiras e coerentes são os ouvintes.
Concordo. – disse a senhorita B., muito maçada com tanta filosofia.
Mas não falemos mais disso. Exaltemos a tua beleza!

Lorde C. era, sem dúvida, um galante. Senhorita B. estava encantada. Um homem educado, bem-nascido e culto não era um artigo fácil de se encontrar nesses tempos.

* * *
O barão de K., mais conhecido como Lorde S., tinha um temperamento alegre e um tanto fanfarrão. Era gordo e glutão, mas todos o admiravam pela sua eloqüência, vivacidade e riqueza. Sua esposa quase nunca saía de casa, mas ele fazia questão de levar sua bela filha aonde quer que fosse. Contudo, um senhor tão nobre tem que ter histórias bizarras ao seu respeito. Dizia-se que era efeminado e que gostava de se encontrar com belos rapazes na surdina para satisfazer suas vontades. Essa era apenas uma das histórias de devassidão atribuídas ao Lorde S..
Sua filha, a senhorita B., pouco se importava com essas histórias, que ela tinha certeza que se tratavam de inverdades. Mas eram, como todas as histórias, comentários feitos com o canto da boca, aos sussurros. Como todo bom boato.

* * *
O pianista começou a tocar “A Valsa do Minuto” de Chopin. O Lorde C. e a senhorita B. se afastaram. Ele foi de encontro ao Lorde S.. Estava com aquilo na cabeça há muito tempo.

Sua filha é encantadora.
Vem falar isso para mim? – disse o Lorde S. com um largo sorriso – Ela é um anjo!
Eu o parabenizo por isso.

Nesse momento os dois apertaram as mãos. Lorde C. colocara um bilhete na mão do Lorde S., que tomou um breve susto.

Lorde C.! vou ao toalete. – disse o Lorde S. um tanto abalado.
Espere um pouco. J. ! Acompanhe o Barão até o toalete.

Lorde S. tinha ido ler o bilhete. Leu rapidamente e colocou no bolso. Saíra do toalete com um sorriso de orelha a orelha.

* * *
Lorde C. era um homem extremamente vaidoso. Não era muito bonito, por isso caprichava em suas vestes e gestos. Isso encantava as mulheres que o tomavam com o respeito merecido ao nobre que ele era. Como bom ganancioso, queria ter tudo o que desejava e tinha poder para isso. Não media esforços para comprar o que queria (achava, com razão, que o dinheiro comprava tudo). Possuir! Essa era a sua filosofia de vida. Era um nobre, portanto cheio de caprichos que precisavam ser satisfeitos.

Hoje, meus caros, possuo quase tudo o que quero. – dizia o Lorde C.

Mas, como ele mesmo dizia, não tinha tudo. Na verdade só uma coisa lhe fazia falta.

* * *
“Encontre-me na esquina da Rua F. com a R.. Tem um beco lá que é perfeito. Eu te amo, mas infelizmente nunca seríamos aceitos. Apareça às duas e vinte cinco da manhã.” Essas palavras não saiam da cabeça do Lorde S.. No coche, a sua filha notou a felicidade em seus olhos:

Meu pai, estás radiante! O que tens? Gostastes tanto assim do baile?
Foi realmente maravilhoso. O Lorde C. sabe como dar uma festa. Aliás, ele ficou muito encantado contigo, minha filha, e percebi que o encanto foi recíproco.
Ele é um perfeito cavalheiro.
Quero que saiba que faço muito gosto dessa amizade.

Lorde S. tratou de destruir o bilhete assim que chegara em casa. Tinha ele decorado. Eram onze horas. Mal esperava para se encontrar com Lorde C.

* * *
Ele planejara aquilo com todas as minúcias. Foi em todos os bairros da cidade onde nunca poderia ser reconhecido procurar lugares para efetuar seu plano. A esquina da Rua F. com a R. era perfeita. Era um local escuro e de nenhum movimento à noite. Poderia fazer o que quisesse que não seria visto. Há alguns meses ele arquitetara o que faria naquela noite.
Agora sim, Lorde C. poderia possuir aquilo que tanto desejava, mas não podia ser qualquer pessoa. Tinha que ser alguém nobre como ele. Não iria se rebaixar em fazer isto a uma pessoa de classe inferior.
Procurou durante muito tempo os seus possíveis alvos. Estava quase desistindo de efetuar seu engenho com um nobre quando Lorde S. apareceu.
Lorde C. percebia o interesse. Sempre o pegava olhando para ele com um olhar lânguido. Ele se aproveitava e se insinuava para o barão que não sabia se era realmente um interesse recíproco ou apenas impressão sua. Lorde S. era o alvo perfeito.

* * *
Um lugar soturno e ermo. Assim se definia a temível Rua F. . Muitas histórias macabras sobre esse lugar eram contadas pela população, principalmente pela quantidade de crimes que ocorria por ali. No final dessa rua existia outro lugar folclórico, mas por outro motivo : A Rua R. . O reduto de todos os vícios da cidade. Prostituição, jogatina, bebidas alcoólicas e muitos outros costumes devassos aconteciam por ali. Dezenas de crimes que aconteciam na F. tinham o seu motivo provocado na R. e a relação entre esses lugares era uma coisa quase inevitável.
Na R. existia um bordel famosíssimo chamado “Le Masion d’Amour” onde acontecia a maioria dos casos amorosos proibidos e onde ocorriam os casos mais macabros. Ele conhecia muito bem esse lugar. Era lá onde ele costumava se hospedar quando queria realizar seus desejos eróticos. Ele saía em plena madrugada deixando sua esposa (dormiam em quartos separados) e filha dormindo tranqüilamente enquanto fazia suas peripécias. Ia para lá a procura de rapazes e moças os mais jovens possíveis e alugava um quarto para passar várias horas ali.
Quando Lorde C. o convidou para aquele beco que ficava na esquina da F. com a R., um lugar deserto e escuro, ele não desconfiou de ser justo ali, no local mais violento da cidade, que se realizasse o encontro. Não existia lugar melhor para isso, principalmente quando não se queria ser reconhecido.

* * *
Meia-noite. A senhorita B. já estava em seu quarto dormindo como um anjo. Lorde S. estava se preparando para sair. A Rua F. era bem longe dali, por isso precisava sair cedo.
Desceu as escadas, que separavam os quartos da sala de estar e demais cômodos, silenciosamente. Foi em direção à biblioteca pegar sua capa e chapéu, as roupas que usava quando saia para tais fins. Pegou seu relógio, colocou no bolso e saiu de casa sorrateiramente. Na rua, andou dois quarteirões adiante e tomou um coche de aluguel:

Para a Rua R. .
O cocheiro nada falou. Já havia levado aquele nobre à tal lugar algumas vezes. Chegaram a Rua R. quando era uma e meia da manhã. Era realmente muito longe. Lorde S. foi para um quarto da “Masion d’Amour”, mas dessa vez sozinho. Queria esperar um pouco para chegar no lugar marcado na hora certa.
Estava muito ansioso quando deram duas e dez da manhã. Era o tempo necessário para caminhar até o beco da F. . Foi à recepção e pagou o tempo que ficara na “Masion”. Caminhou com bastante pressa.
O beco estava muito escuro. Já deveriam ser duas e vinte quando chegara lá. Era um lugar sujo e estranho. Analisou o local, apesar de não conseguir ver muita coisa e virou-se para a rua, na esperança de que chegasse alguém. Foi aí que sentiu uma dor forte e não viu mais nada depois disso.

* * *
Lorde C. saíra de casa à meia-noite em ponto. Finalmente iria realizar o desejo que o corroia por dentro há muito tempo. Era um pensador e sabia que tinha quase tudo o que desejava. Mas, um dia em suas reflexões sobre a vida, percebeu que a única coisa que lhe faltava era um poder. O filho do Conde de W., com certeza era um homem muito poderoso e influente, entretanto ele queria usar esse poder de uma maneira diferente ou como ele mesmo chamava “uma maneira divina”.
O poder de amar, odiar, comprar, enganar, subornar, conversar, julgar, todos esses ele já tinha usado (e os usava com freqüência). Só faltava usar um poder : o de matar. Nunca havia tido essa sensação. Desde que pensou nisso uma enorme sensação de vazio tomou conta dele. De repente viver perdeu o significado. Teria que realizar esse desejo. Entretanto não poderia ser com qualquer pessoa. Não teria graça matar uma pessoa do povo ou um pobre. Nunca se rebaixaria a tal ponto. Tinha que ser alguém da sua classe , alguém que as pessoas sentiriam a perda. “O poder de tirar a vida”; só Deus o possuía e ele queria tê-lo também.
Foi para a rua vestindo uma capa e uma cartola, tinha que parecer elegante nesse momento célebre. Levava uma garrafa de vinho nas mãos, mas ela continha água. Também colocara uma pedra grande e lisa no bolso. Não queria que sua vítima sofresse (era o ato de matar em si que o fascinava, não o sofrimento conseqüente dele). 28 nov (3 dias atrás) Fillipe
Em uma esquina, pegou um coche e pediu ao condutor que o levasse até a loja “Graça” que ficava no começo da Rua F..

Não posso senhor.
Ora essa! Porque não quer me levar até lá?
É um lugar extremamente perigoso para uma pessoa como o senhor a essa hora.
Deixe disso! Leve-me! Pago o quanto desejar!

Tirou algumas moedas do bolso e ofereceu ao cocheiro

Tome! Dinheiro não é problema! Vamos Logo!

O cocheiro foi o mais rápido possível, como o ele havia mandado. Quando chegaram, ele pediu que o esperasse na frente da loja. Não demoraria muito, no máximo meia hora. Ofereceu mais dinheiro ao cocheiro e ele aceitou. Andou até o local marcado rapidamente. Eram duas horas em ponto. Ele se escondeu no fim do beco na escuridão. Era impossível ser visto ali. Tirou a pedra do bolso e o casaco. Deixou a garrafa ao seu lado e esperou.
Ouviu alguns passos. Um homem estava vindo. Seria o Lorde S.? Ficou quieto. O homem chegou na entrada do beco que era iluminada por uma leve penumbra. Pelo vulto, Lorde C. reconheceu aquela silhueta gorda. Ficou esperando. O homem olhou em volta e se virou para a rua. Era esta a oportunidade que ele esperava.
Bateu com a pedra na nuca do Lorde S. que desmaiou na hora. Desabou fortemente e fez um barulho quando caiu no chão. Ele bateu mais algumas vezes na cabeça dele para ter certeza que o tinha matado.
Lorde C. tinha terminado o que viera fazer ali. Por isso, vestiu seu casaco e foi embora tão silencioso quanto chegara. Estava satisfeito. Não sabia como era tão boa aquela sensação.

- A vida está em minhas mãos, - disse olhando para suas mãos sujas – só que ninguém pode ver que a possuo!

Ali estava escuro, mesmo assim Lorde C. conseguiu encontrar a garrafa d’água que levara consigo e lavou as mãos. Andou alguns metros e chamou o cocheiro para acompanhá-lo de longe. Depois subiria no coche e iria para sua casa descansar. Haveria muitas festas amanhã.

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